INOVSEA revela potencial da construção, manutenção, conversão e reparação naval

O setor da construção, manutenção, conversão e reparação naval, tem potencial para assumir um importante papel no âmbito da economia do mar nacional.

Imagem: MV Norwegian Encore em construção

Imagem: MV Norwegian Encore em construção

As oportunidades surgem em vários segmentos de mercado em expansão global, nomeadamente a construção e a conversão de navios de passageiros e embarcações de recreio, e a construção e reparação de estruturas offshore. As oportunidades são ainda reforçadas em vários domínios, por força da regulamentação imposta no âmbito de questões ambientais e sociais, nomeadamente a poluição gerada por navios e o seu impacto nas alterações climáticas.

Como desafios ao desenvolvimento deste setor, destacam-se a escassez de profissionais especializados e as sérias limitações na formação e qualificação de recursos humanos em Portugal, comprometendo o desenvolvimento e presença das empresas nacionais na cadeia de valor global da indústria marítima.

Caracterização

O setor da construção, manutenção e reparação naval inclui atividades económicas que podem ser enquadradas em três grupos:

  1. Construção de embarcações e estruturas flutuantes;

  2. Construção de embarcações de recreio e de desporto; e

  3. Reparação, manutenção e conversão de embarcações.

Inclui ainda um diversificado número de empresas que operam em áreas ligadas à indústria marítima, nomeadamente arquitetura naval; engenharia; serviços de formação e consultoria; fornecedores de sistemas e equipamentos diversos; e prestadores de serviços.

A nível nacional, destacam-se as atividades de construção de navios de cruzeiros; a conversão de navios existentes (modificação e incorporação de novas tecnologias); a reparação e manutenção de grandes navios da marinha mercante; a construção de embarcações complexas; a manutenção da frota da marinha militar; e a construção e manutenção de embarcações de pesca e embarcações de recreio.

Cadeia de valor

A cadeia de valor do setor da construção, manutenção e reparação naval inclui o setor comercial (marinha mercante e náutica de recreio) e o setor da defesa (marinha militar). Em ambos, abrange as atividades de conceção (design, arquitetura e engenharia naval); construção, manutenção, reparação e conversão de todos os tipos de navios, embarcações e estruturas flutuantes; e uma vasta cadeia de fornecedores de sistemas marítimos, equipamentos e prestação de serviços.

Este setor pode ser analisado sob duas perspetivas distintas, em dois grandes grupos de atividade económica:

  1. Construção naval; e

  2. Manutenção, reparação e conversão de navios e estruturas.

Cada um destes grupos apresenta características próprias e desafios específicos. As tendências de evolução de mercado de cada um destes grupos são também distintas, justificando a análise de forma individualizada que se apresenta de seguida.

Construção naval

As embarcações de grande dimensão, normalmente designadas por navios, são bens de capital de alto valor agregado, produzidos por encomenda e recorrendo intensivamente a recursos humanos qualificados, com complexas redes de fornecedores especializados em vários setores de atividade. Os equipamentos incorporados incluem, além do aço e tintas, motores, turbinas, bombas, caldeiras, ar condicionado, hélices, âncoras, compressores, sistemas de automação e controlo, quadros elétricos, sistemas de navegação, entre muitos outros. Os navios de cruzeiros são um bom exemplo da complexidade construtiva e da sofisticação em termos tecnológicos e de design, incorporando sistemas e equipamentos estruturais do próprio navio, mas também equipamentos de hotelaria, entretenimento, turismo e lazer.

Dado o elevado número de incorporação de insumos intermédios, a construção naval pode considerar-se uma indústria de montagem, semelhante à indústria automóvel, mas muito mais complexa. De facto, enquanto um automóvel pode incorporar 3 000 componentes, um grande navio de cruzeiros incorpora mais de 900 000. Para fazer face a esta complexidade, os estaleiros recorrem a sistemas eficazes e a competências organizacionais rigorosas, que lhes permitem gerir a informação, desenvolver planos de produção, controlar materiais e atingir altos padrões de qualidade na produção de componentes.

As últimas duas décadas testemunharam uma concentração crescente da construção naval na China, Coreia do Sul e Japão. Juntos, estes três países entregam mais de 80% dos navios em termos de arqueação compensada. Embora estas três economias dominem o mercado de navios de carga, nomeadamente graneleiros, navios-tanque e porta-contentores, os navios de cruzeiros são construídos principalmente em estaleiros europeus. De facto, a Europa evoluiu, nas últimas duas décadas, para a especialização na construção de navios e estruturas complexas, em clusters focados em determinados nichos de mercado. Incluem-se aqui os navios de passageiros (cruzeiros, mega-iates e ferries), embarcações especializadas e estruturas offshore. Em 2019, este tipo de construção naval representou 95% das encomendas dos estaleiros europeus; apenas 5% da capacidade dos estaleiros foi utilizada na construção de navios mercantes de carga, com uso intensivo de aço, como os navios-tanque, graneleiros e porta-contentores.

Manutenção, reparação e conversão

A indústria de manutenção, reparação e conversão de navios (Ship Maintenance, Repair & Conversion SMRC), apresenta características diferentes da indústria de construção de novas embarcações. Este é um mercado volátil em que os navios entram em doca seca durante alguns dias para uma reparação rápida, ou nela permanecem durante meses, no caso de uma grande conversão ou renovação (retrofitting). As atividades realizadas incidem, na maior parte dos casos, na remoção de revestimentos, revisão e manutenção periódica de equipamentos, alongamento de navios, instalação de novos sistemas, etc., justificando, em muitos casos, um tipo de gestão especializado e diferenciado.

A importância da indústria de SMRC está a aumentar, com o foco crescente no impacto da indústria do transporte marítimo no meio ambiente e nas alterações climáticas, em particular devido às emissões dos navios. Foca-se na adaptação de dispositivos de economia de energia; na conversão de navios para combustíveis alternativos; na instalação de sistemas de tratamento de água de lastro; e na instalação de sistemas para tratamento de gases de evacuação. Além da capacidade para lidar com projetos complexos em navios, a indústria SMRC tem também (ou pode ter) a capacidade para lidar com outros grandes ativos, como por exemplo a conversão de estruturas offshore para estruturas de aquicultura, e a manutenção de estruturas de energia eólica offshore. Com a crescente importância da economia azul e cada vez mais atividades offshore, o trabalho da indústria SMRC tem um enorme potencial de diversificação.

Green Shipping

O transporte marítimo internacional é responsável pela emissão de quase 3% das emissões globais de gases com efeito de estufa, transportando cerca de 90% do comércio global. Para se atingirem as metas globais de descarbonização estabelecidas para 2050, torna-se fundamental que, até 2030, entrem em operação navios comercialmente viáveis com zero emissões, aumentando estes o seu número de forma acentuada ao longo das décadas de 2030 e 2040. Este objetivo exigirá inovação tecnológica no desenvolvimento dos navios e da futura cadeia de abastecimento de combustíveis amigos do ambiente, nomeadamente o hidrogénio.

As primeiras soluções começam já a surgir, em particular na navegação em águas interiores e no transporte marítimo de curta distância (short sea shipping), onde se multiplica o recurso a propulsão elétrica por baterias ou energia solar. Entretanto a opinião pública e a ação de várias organizações, têm dado enorme visibilidade ao impacto da poluição gerada por navios, em particular por navios de cruzeiros, o que reforça ainda mais a necessidade de se encontrarem e implementarem soluções que promovam um transporte marítimo “verde”. A descarbonização do transporte marítimo é uma prioridade, afirmando-se já como um motor de desenvolvimento económico que as empresas da fileira da construção, manutenção e reparação naval não podem, de forma alguma, desprezar.

Regulamentação internacional

A fileira da construção, manutenção e reparação naval é fortemente influenciada pela regulamentação internacional, estabelecida pela Organização Marítima Internacional (IMO) e por outras organizações. Verifica-se hoje um alinhamento de políticas e estratégias nacionais, regionais e internacionais, no que respeita aos temas da poluição do oceano e da atmosfera; e das alterações climáticas e da proteção dos ecossistemas marinhos e da biodiversidade – que introduzem vários desafios para este setor, mas também oportunidades de mercado para fornecedores de equipamentos marítimos e estaleiros. O tema “green shipping” é uma prioridade global e irá merecer forte investimento.

Analisamos de seguida o impacto da regulamentação internacional na fileira, na perspetiva das alterações climáticas e na perspetiva da proteção do ambiente e biodiversidade marinha.

Regulamentação relacionada com as alterações climáticas

Emissões de gases com efeito de estufa

O transporte marítimo é o meio de transporte com menos emissões de CO₂ por tonelada de carga deslocada por quilómetro, comparativamente ao transporte ferroviário, rodoviário e aéreo (navios: 8g CO₂/tKm; ferrovia: 35g CO₂/tKm; rodovia: 110g CO₂/tKm; aéreo: 665g CO₂/tKm). No entanto, sendo o transporte marítimo responsável pelo transporte de 90% da carga global e existindo mais de 100 000 navios a operar, este setor é responsável por cerca de 3% das emissões de gases com efeito de estufa (GEE).

Para fazer frente a este desafio, a IMO tem-se empenhado ativamente numa abordagem global para aumentar ainda mais a eficiência energética dos navios e desenvolver medidas para reduzir as emissões de GEE dos navios. A estratégia inicial estabelecida em 2018, definiu como objetivos (1) reduzir as emissões de CO₂ no transporte marítimo internacional, em média por viagem em pelo menos 40% até 2030 e 70% até 2050, em comparação com 2008; e (2) reduzir as emissões anuais totais de GEE em pelo menos 50% até 2050 em comparação com 2008. A estratégia procura atingir zero emissões de CO₂, de forma consistente com a meta do Acordo de Paris de, até 2050, manter o aumento na temperatura média global abaixo de 2°C e desenvolver esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.

Este esforço tem despoletado intensa atividade de pesquisa e desenvolvimento, a nível de alternativas em termos de combustíveis e instalação de sistemas melhoradores da eficiência energética dos navios. Irá, quaisquer que sejam as opções técnicas selecionadas, obrigar à conversão de muitos equipamentos e estruturas nos atuais navios, o que significa muito trabalho para a indústria de manutenção, reparação e conversão de navios (SMRC). Muitos navios ficarão também técnica e economicamente obsoletos, o que irá alimentar a indústria de desmantelamento e reciclagem de navios.

Eficiência energética dos navios

Independentemente dos combustíveis utilizados, a eficiência energética dos navios pode ser melhorada pela incorporação de soluções técnicas estruturais ou pela adoção de tecnologias de otimização da navegação. As tecnologias de melhoria de eficiência energética relevantes para os navios existentes incluem (1) o revestimento do casco dos navios, otimização, limpeza e manutenção; (2) sistemas de propulsão alternativos, nomeadamente o vento; (3) novas hélices e lemes, manutenção e otimização; (4) a substituição ou atualização de motores; e (5) a otimização da gestão de potência.

As operações de navegação com impacto na eficiência energética incluem (1) a redução de velocidade; (2) a otimização do calendário de entrada em porto; (3) a otimização de rotas considerando condições meteorológicas; e (4) a utilização de energia fornecida pelos portos.

Regulamentação relacionada com o ambiente e biodiversidade marinha

Emissões de óxidos de enxofre, óxidos de azoto e partículas

Além das emissões de gases com efeito de estufa, o transporte marítimo é também responsável pela emissão para a atmosfera de óxidos de enxofre, óxidos de azoto e material em partículas, prejudiciais à saúde das pessoas e ao ambiente, nomeadamente através das chuvas ácidas que prejudicam florestas, plantações e os ecossistemas marinhos, contribuindo para a acidificação do oceano. Também aqui a regulação internacional tem imposto restrições, nomeadamente através do Anexo VI da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL).

De acordo com a última revisão do anexo citado, o teor de enxofre nos combustíveis dos navios em navegação global foi reduzido de 3,5% para 0,5%, desde 1 de janeiro de 2020. No caso dos navios que operam em áreas de emissões controladas (ECAs), a redução foi ainda maior, de 1% para 0,1% em 2015. Os armadores podem optar por diferentes métodos para atingirem a conformidade e respeitarem a regulamentação: (1) consumir fuel com baixo teor de enxofre; (2) em alternativa ao fuel, optar por consumir gás natural liquefeito (LNG) ou outro combustível nos motores e geradores; ou (3) reduzir as emissões de enxofre, equipando os navios com lavadores (scrubbers) ou outras tecnologias de limpeza de gases de evacuação. As duas últimas opções trouxeram vastas oportunidades de negócio para os fabricantes de motores marítimos e de equipamentos, e também para os estaleiros onde foram e são realizadas as conversões.

Gestão da água de lastro (ballast water management)

A introdução e estabelecimento de espécies aquáticas invasoras é considerada uma das maiores ameaças aos ecossistemas de água doce, costeiros e marinhos do mundo. A questão das espécies introduzidas em meios marinhos, vulgarmente designadas por exóticas ou invasoras, através das águas de lastro dos navios, tem sido alvo de grande preocupação. De facto, por questões de estabilidade, muitos navios enchem os tanques de lastro com água do mar no ponto de destino da sua carga e libertam esta água na zona do porto de carga, o que potencia a migração de espécies marinhas, incluindo bactérias, micróbios, pequenos invertebrados, ovos, etc.

Para dar resposta e prevenir os efeitos negativos desta situação, a IMO adotou, em 2004, a Convenção Internacional para o Controlo e Gestão das Águas de Lastro e Sedimentos dos Navios, tendo a mesma entrado em vigor em setembro de 2017. A Convenção visa prevenir o risco de introdução e proliferação de espécies não nativas, após a descarga de água de lastro não tratada dos navios. A partir desta data, os navios passaram a ser obrigados a gerir a sua água de lastro para atender aos padrões definidos na Convenção: D-1 que exige que os navios troquem e libertem pelo menos 95% da água de lastro longe da costa; e D-2 que aumenta a restrição a uma quantidade máxima especificada de organismos que podem ser libertados, exigindo a instalação de sistemas de tratamento de água adicionais. Também aqui existe uma grande oportunidade para a fileira, dado que, até setembro de 2024, todos os navios existentes devem cumprir os requisitos D-2, ou seja, têm de instalar sistemas de tratamento de água de lastro.

Incrustação biológica marinha no casco de navios

A bioincrustação ou incrustação biológica (biofouling) é definida como a acumulação de microrganismos, plantas, algas ou pequenos animais em superfícies húmidas das embarcações (zona submersa do casco), que possuem uma função mecânica, causando deficiências estruturais ou outras deficiências funcionais. A bioincrustação foi identificada como uma das principais vias para a transferência de espécies aquáticas invasoras (IAS). De facto, quando os navios ou estruturas se deslocam para novas áreas, essas espécies podem libertar-se, adaptar-se ao novo habitat, superar a fauna local e tornar-se invasoras, com efeitos negativos no ecossistema hospedeiro. Do ponto de vista mecânico, os efeitos negativos da bioincrustação manifestam-se pelo aumento da rugosidade da superfície dos cascos e hélices dos navios, resultando em perda de eficiência energética com aumento do consumo de combustível. Para prevenir e evitar os efeitos negativos da bioincrustação, os cascos são pintados com tintas com propriedades antivegetativas (anti-fouling). Porém alguns dos seus componentes podem ser prejudiciais, atuando como biocidas com substâncias tóxicas, pelo que é proibida a sua utilização.

A Convenção Internacional relativa ao Controlo dos Sistemas Antivegetativos Nocivos nos Navios, adotada em 2001 foca-se na prevenção dos impactos adversos devido ao uso de biocidas nos revestimentos de tintas, tratamentos de superfícies, equipamentos ou dispositivos usados em navios para controlar ou prevenir a fixação de organismos indesejáveis (sistemas anti-fouling). Entrou em vigor em 2008, proibindo a aplicação de compostos organoestânicos nos referidos sistemas. Entretanto está em estudo a proposta de uma emenda à Convenção para adicionar o controlo sobre um outro biocida (chemical compound cybutryne), que apresenta efeitos adversos sobre os ecossistemas aquáticos. Esta e outras revisões em estudo (IMO Biofouling Guidelines), podem conduzir à necessidade de proceder a operações em estaleiros, para remoção das referidas substâncias, uma oportunidade para a indústria da manutenção e reparação naval.

Desmantelamento e reciclagem de navios

Os navios e as estruturas marítimas offshore também têm fim de vida. As causas são fundamentalmente de natureza económica, com origem nas flutuações do mercado de transporte marítimo, recursos fósseis, implementação de nova regulamentação que torna os navios obsoletos, e até pandemias como a Covid-19 que afetou particularmente a indústria de cruzeiros, enviando muitos navios para desmantelamento (scrapping). Esta operação inclui a remoção de líquidos, detritos e matérias perigosas, a desmontagem de equipamentos e o desmantelamento estrutural. A reciclagem consiste no aproveitamento e transformação de materiais. Os estaleiros de construção naval possuem a capacidade para realizar estas atividades, mas deve ser ponderado o seu interesse económico – dependente da procura de materiais reciclados e dos custos do seu transporte e a necessidade de utilizar áreas com condições dedicadas, dado o impacto sonoro e a produção de poeiras, entre outros aspetos.

Ponto de situação

A Convenção de Hong Kong para a Reciclagem Segura e Ambientalmente Correta dos Navios, adotada pela IMO em 2009, visa abordar todas as questões relativas à reciclagem de navios, procurando garantir que as embarcações ao serem recicladas, não representem qualquer risco desnecessário para a saúde e segurança humana ou para o meio ambiente. Introduz requisitos obrigatórios a nível mundial, de modo a garantir uma solução eficiente e eficaz para as práticas perigosas e poluentes da reciclagem de navios, reconhecendo que os navios a desmantelar podem incluir substâncias ambientalmente nocivas, como amianto, metais pesados, hidrocarbonetos, entre outras. Aborda também as preocupações relacionadas com as condições ambientais e de trabalho em muitas das instalações de reciclagem de navios do mundo, reconhecendo as condições degradantes em que as operações são realizadas na maior parte dos casos. Abrange ainda o projeto, a construção, exploração e preparação dos navios, de forma a facilitar a reciclagem segura e correta. Esta Convenção não foi ainda ratificada pela maioria necessária dos Estados Partes (incluindo Portugal), pelo que não entrou ainda em vigor.

O Regulamento (UE) n° 1257/2013 relativo à reciclagem de navios entrou em vigor em dezembro de 2013. Aplica-se a navios com arqueação superior a 500 GT que arvoram a bandeira de um Estado-Membro da UE e a navios que visitam a UE que arvoram a bandeira de um Estado não membro da UE. O regulamento da UE está em grande parte alinhado com a Convenção de Hong Kong (IMO), destacando-se pela exigência do estabelecimento de uma lista de estaleiros de reciclagem de navios aprovados (a “Lista da UE”). Os navios que arvoram a bandeira de um Estado membro da UE só podem ser reciclados em instalações que fazem parte da Lista da UE. Essas instalações podem estar localizadas fora da UE. A última atualização da Lista da UE foi publicada em novembro 2020 e inclui 43 estaleiros ou instalações específicas, 34 em países da União Europeia e no Reino Unido (apenas uma em Portugal), e 9 em países terceiros que incluem a Turquia e os EUA.

As oportunidades na indústria de cruzeiros

A indústria de cruzeiros cresceu de forma consistente até final de 2019, ao ritmo de quase 8% ao ano, garantindo uma larga carteira de encomenda de navios para dar resposta à elevada e crescente procura de viagens no meio marítimo. Apesar da pandemia de Covid-19, continuam encomendados, até 2027, 107 novos navios. Entretanto, a atividade dos cruzeiros está progressivamente a ser retomada, com forte adesão dos passageiros, ávidos pela “vingança do viajante” após mais de um ano de limitações em termos de mobilidade e de lazer. A construção de navios é uma oportunidade que deve ser ponderada, estando Portugal já a construir navios com tecnologia avançada, nomeadamente em Viana do Castelo. Praticamente todos os anos surgem novas companhias que encomendam a construção de navios, alguns de grande dimensão, mas também muitos de menores dimensões – os navios de expedição e os mega-iates, passíveis de ser construídos em estaleiros de menor capacidade.

Mas a indústria de cruzeiros oferece outras oportunidades, extensivas a um leque alargado de setores de atividade, que pouco têm a ver com a construção naval. Referimo-nos, neste caso, a empresas que podem contribuir para o equipamento dos navios, fornecendo mobiliário, têxteis, fardas, equipamento de hotelaria, serviços de formação, design, arquitetura de interiores e até tripulantes.

Estratégia Nacional para o Mar

A Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030 preconiza uma área de intervenção prioritária relacionada com o setor em análise – AI10. Estaleiros, construção e reparação naval – da qual se partilha parte relevante:

“A indústria de construção e reparação naval portuguesa apresenta vantagens competitivas devido à localização geoestratégica do País, colocando-o no centro das principais rotas marítimas, às condições climáticas e à disponibilidade de mão-de-obra qualificada. Trata-se de um setor considerado estratégico para Portugal, que assegura emprego e riqueza ao longo das diferentes indústrias que pertencem à respetiva cadeia de valor, devendo, portanto, ser apoiado no desenvolvimento de sistemas tecnológicos de otimização e controlo da produção que lhe permitam competir dentro do mercado europeu, baseado numa imagem de qualidade e sustentabilidade. Pode, também, beneficiar do desenvolvimento de tecnologias como os sistemas para observação remota da Terra, para fiscalização, controle e comunicação, apostas que constituem um incentivo à capacidade produtiva nacional, à reindustrialização e à redução da dependência do setor face ao exterior, promovendo o envolvimento de empresas de outros setores no fabrico de plataformas para uso no mar.

Os estaleiros navais, particularmente os de menor dimensão, devem também robustecer a sua capacidade de responder à renovação e manutenção das embarcações da frota de pesca e embarcações e estruturas de apoio à aquicultura. Devem ainda apostar na recolha e transmissão do saber acumulado de várias gerações sobre construção e reparação de embarcações tradicionais, enquanto nicho de negócio com elevada procura nacional e internacional no âmbito da náutica de recreio. As diferentes medidas definidas terão em vista o apoio à dinamização desta atividade que, apesar de tradicional, detém um know-how nacional acumulado e apresenta um elevado valor acrescentado de inovação e de criação de novos produtos.

A aposta nacional na I&DI azul colocará este setor na liderança de um novo modelo sustentável de construção naval. A produção e reconversão de embarcações em embarcações limpas, com um menor nível de emissões de carbono (clean ships ou green vessels), sem descargas no mar e com menos ruído, são fatores chave no combate às alterações climáticas, à perda de biodiversidade e à poluição. O mesmo acontece com o design e a construção de embarcações comerciais de grande comprimento com mais de 500 GT (cerca de 50 m de comprimento) com cascos feitos inteiramente de materiais compósitos, que permitirá uma redução significativa no peso estrutural e na estabilidade das embarcações, com a consequente redução do consumo de energia, de emissões de gases com efeito estufa e de ruído subaquático. Por outro lado, o desenvolvimento e aproveitamento de plataformas offshore multiúsos permitirá apostar na produção e no uso de novas formas de energia de fontes renováveis, como por exemplo o hidrogénio. Tal opção, aliada ao estabelecimento de sinergias com a indústria de energia eólica offshore promove a autonomia energética do País na senda da neutralidade carbónica, estando devidamente alinhada com a Estratégia Nacional para o Hidrogénio, a Estratégia Industrial para as Energias Renováveis Oceânicas e com o RNC 2050 [Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050] e o PNEC 2030 [Plano Nacional Energia e Clima 2030].

A reciclagem e desmantelamento de navios que, nos países ocidentais, esteve tradicionalmente associado a uma imagem de trabalho de pouco valor acrescentado, sem necessidade de mão-de-obra especializada, pode constituir uma oportunidade para os estaleiros nacionais. Com o virar do século, o mundo começou a focar-se na forma pouco sustentável como estes resíduos eram tratados e, em 2009, foi assinada a Convenção de Hong-Kong, no seio da OMI, seguindo-se, em 2013, a aprovação de um regulamento comunitário relativo à reciclagem de navios. Neste contexto, Portugal pode ter um papel significativo através de uma conversão parcial dos seus estaleiros, contribuindo para que esta atividade se desenrole de forma sustentada, reforçando assim a segurança e a proteção da saúde humana e do ambiente marinho, ao longo de todo o ciclo de vida de uma embarcação.”

Do total de medidas apresentadas no Plano de Ação, muitas estão relacionadas com o setor da construção, manutenção e reparação naval, pelo que merecem uma análise detalhada no próprio documento.

Benchmarking

Em 2018, de acordo com o relatório “EU Blue Economy Report 2020”, o Reino Unido destacou-se como nação líder em termos do valor acrescentado bruto (VAB) gerado pelo setor da construção, manutenção e reparação naval. No total do valor gerado na União Europeia, o Reino Unido registou uma participação de 21%, sendo seguido pela Alemanha (18%), França (17%), Itália (15%) e Países Baixos (5%). Foi também a nação que mais recursos humanos empregou no setor, pelo que a sua estratégia merece ser analisada do ponto de vista de benchmarking.

O Reino Unido apresenta uma visão muito clara sobre as prioridades para a sua indústria marítima, onde estão incluídos os setores do transporte marítimo, portos, serviços marítimos, engenharia e náutica de recreio. A fileira da construção, manutenção e reparação naval está, de alguma forma, distribuída por todos os setores referidos. A Maritime UK, uma “umbrella body” para o setor marítimo, apresenta 5 prioridades estratégicas:

Pessoas: "Desenvolver uma força de trabalho talentosa e diversificada em todas as partes do setor, impulsionando o crescimento das empresas, inspirada para se juntar ao setor marítimo por meio de uma campanha de carreiras profissionais e bem formada para usar o seu talento ao máximo."

Inovação: "Posicionar o Reino Unido como líder de inovação, em todos os desafios enfrentados pela indústria marítima globalmente, facilitando a colaboração em todo o setor e garantindo o investimento do governo no novo veículo de colaboração intersectorial nacional – o Maritime Research & Innovation UK (MarRI-UK)."

Crescimento Regional: "Impulsionar a prosperidade e as oportunidades nas comunidades costeiras, trabalhando com o governo para criar condições favoráveis ao investimento em negócios marítimos – como os portos, e criando uma rede de organizações marítimas regionais para fomentar a colaboração entre a indústria, o governo local e a academia, para impulsionar o crescimento. "

Meio Ambiente: "Trabalhar de forma colaborativa em todo o setor e com o governo para minimizar o impacto do setor sobre o meio ambiente, para promover e possibilitar projetos e iniciativas eficazes que aumentem a sustentabilidade ambiental e trabalhar para concretizar novas oportunidades, como a navegação costeira e interior."

Competitividade: "Atrair novos negócios marítimos para o Reino Unido, trabalhando com o governo para aumentar a competitividade do ambiente empresarial e aumentar a exportação de produtos e serviços marítimos, apoiando empresas a promover o setor em todo o território diplomático e comercial do Reino Unido."

A nível governamental ou com o seu apoio, foram lançadas várias iniciativas e estratégias, que vale a pena conhecer, nomeadamente a Maritime Research & Innovation UK (MarRI-UK); a Maritime UK Skills Strategy; a Maritime 2050: navigating the future; o 5-year plan promoting the UK’s world class global maritime offer; e a National Shipbuilding Strategy. Estas iniciativas são apresentadas em detalhe no plano de ação INOVSEA.

Inovação

Saímos do Reino Unido e visitamos os Países Baixos, outra nação vincadamente marítima onde se encontram inúmeros casos de sucesso em termos de inovação azul. Destacam-se aqui o Maritime Research Institute Netherlands; o Brainport Eindhoven; e o Damen Shipyards Group. Sucedem-se iniciativas e investimentos de alguma forma relacionados com o setor da construção, manutenção e reparação naval, que merecem atenção dado que podem ser precursores de grandes mudanças e oportunidades futuras. Apresentamos algumas de seguida.

Acesso seguro a navios e estruturas offshore - Gangway inteligente

Os Países Baixos têm uma forte relação com o mar, assumindo-se como uma potência marítima no domínio da inovação. Um engenheiro deste país desenvolveu um projeto inovador que é já um sucesso comercial. Preocupado com a segurança das pessoas que trabalham e realizam manutenção em estruturas offshore, nomeadamente plataformas e torres eólicas, desenvolveu uma estrutura de acesso móvel e inteligente, que compensa todos os movimentos das embarcações devido à ação do mar. Permite assim que, mesmo em mar agitado e com acentuados movimentos das embarcações, a estrutura de acesso de pessoas se mantenha estática. Uma ideia simples que está a revolucionar o mercado.

Iates com propulsão a hidrogénio

O hidrogénio promete ser o combustível do futuro no meio marítimo e não só. As soluções já existem e a tecnologia está disponível. A empresa francesa Fountaine Pajot Shipyard anunciou o lançamento do primeiro catamarã com propulsão a hidrogénio, previsto já para 2022. O plano estratégico de desenvolvimento intitula-se Odyssea 2024 e visa encontrar soluções energéticas para os seus catamarãs à vela. O primeiro projeto irá incorporar uma pilha de hidrogénio (fuel cell), especificamente desenvolvida para o setor marítimo, num catamarã modelo Samana 59’. Mas esta não é a única iniciativa relativamente à utilização de hidrogénio em embarcações. Também a reconhecida Lürssen, um estaleiro líder na construção de grandes iates de luxo com sede na Alemanha, anunciou que irá desenvolver super-iates com propulsão por pilhas de combustível a hidrogénio. Conforme publicitado, a nova tecnologia irá permitir ancorar sem emissões durante 15 dias ou navegar 1 000 milhas náuticas em baixa velocidade.

Os navios residência e os hotéis flutuantes

Com uma população cada vez mais envelhecida, com tempo disponível e, em muitos casos, com boa capacidade financeira, o futuro vai trazer cada vez mais formas para as pessoas aproveitarem o oceano. O conceito de navios residência, autênticos condomínios nos quais os passageiros são proprietários de frações, tornou-se realidade em 2002, com o lançamento do navio The World (Residences at Sea). Recentemente surgiram mais iniciativas para novos projetos de navios residência, nomeadamente o navio Narrative da empresa Storylines e o navio Njord, da empresa Ocean Residences. O navio Narrative será construído nos estaleiros Brodosplit Shipyard na Croácia. Entretanto, no Dubai é já realidade o investimento num hotel flutuante - o Sea Palace – que inclui um corpo central ligado a 6 “villas”. A construção das estruturas está a cargo do Seagate Shipyard, um estaleiro de construção, manutenção e reparação naval que se especializou na construção de instalações e habitações flutuantes.

Disrupção pela fabricação aditiva (3D Printing)

Construir navios e embarcações constitui um dos processos de fabricação mais complexos do mundo, exigindo a combinação de engenharia avançada e recursos humanos talentosos, qualificados e especializados. Tal como em outras indústrias, os estaleiros e os seus fornecedores são desafiados a aumentar a sua eficiência, a reduzir a pegada das suas operações e a encontrar as pessoas que precisam. De facto, a inovação resulta do encontro entre novas tecnologias e pessoas, em ambientes colaborativos.

Falando de inovação, torna-se fundamental abordar a fabricação aditiva ou impressão 3D, um processo que irá introduzir disrupção na fileira da construção, manutenção e reparação naval, ainda nesta década.

A fabricação aditiva pode, por um lado, melhorar radicalmente a eficiência de algumas operações já realizadas pelos estaleiros e pelos fornecedores de componentes; por outro, pode introduzir novas áreas de negócio complementares às existentes, aproveitando recursos e mercado já existente, aumentando e melhorando a oferta aos atuais clientes.

Existem diferentes tecnologias de fabricação aditiva, todas com elevado nível de automatização, com capacidade para produzir desde pequenos componentes, a embarcações e casas, em materiais que incluem polímeros, resinas, betão e metais. Muitos componentes utilizados em várias indústrias, incluindo a saúde e a indústria aeroespacial são já fabricados em pequenas ou grandes séries utilizando algumas destas tecnologias. Algumas peças são de tal forma complexas que apenas podem produzidas por processos de fabricação aditiva.

Olhando especificamente para a indústria marítima e como referido previamente, a tecnologia existente já permite a construção autónoma de pequenas embarcações. Algumas delas são “impressas” em fibra de vidro, com formas complexas e design apelativo, como o caso do projeto MAMBO da empresa italiana MIO. São também realizados testes com navios que transportam equipamentos de fabricação aditiva, com acesso a uma biblioteca de componentes digitalizados, de forma que podem produzir a pedido sem necessidade de armazenamento de componentes. Por outro lado, a tecnologia atual permite fabricar hélices metálicas de grandes dimensões através de fabricação aditiva. As possibilidades são infinitas. Foi também já lançado o serviço de impressão 3D para componentes marítimos, com o objetivo de reduzir os custos relacionados com a cadeia de abastecimento e os tempos de entrega, oferecendo a substituição de peças como um serviço. Esta solução inovadora assenta na digitalização, impressão 3D e entrega de peças por encomenda, com produção local na área dos portos e zonas de ancoragem.

Impressão 3D em centros portuários

Em 2016, o Porto de Roterdão decidiu iniciar o desenvolvimento de uma nova área de atividade, procurando fornecer serviços de valor acrescentado significativo aos principais clientes dos portos. Para tal iniciou um projeto piloto intitulado 3D Printing Marine Spares, em conjunto com vários parceiros empresariais e da academia, que se focou na fabricação de peças metálicas de reposição para aplicações principalmente marítimas.

Deste projeto piloto nasceu o RAMLAB, que produz peças metálicas de grandes dimensões por encomenda, utilizando o processo de fabricação aditiva. De acordo com a informação publicada na sua plataforma, a visão do RAMLAB consiste em “fabricar grandes peças de metal certificadas por encomenda”. A sua missão consiste em “acelerar a adoção da tecnologia de fabricação aditiva, fornecendo aos seus parceiros, acesso fácil a toda a cadeia de valor deste processo de fabrico”. Expressa ainda que “as peças de substituição industriais devem estar sempre disponíveis onde forem necessárias, sempre que forem necessárias. Devem também cumprir ou exceder os requisitos de qualidade do utilizador final a um preço competitivo. A fabricação aditiva permitirá alcançar a disponibilidade em larga escala de peças de metal certificadas, por encomenda. O RAMLAB irá acelerar a adoção de tecnologia de fabricação aditiva em toda a cadeia de valor. No futuro, eliminará completamente o tempo de entrega e a necessidade de manter peças em stock.”

A questão que se coloca: se uma empresa nacional do setor da construção naval quiser implementar um centro de inovação interno, poderá dispensar a integração de processos de fabricação aditiva?

CONCLUSÕES

Face ao exposto, não restam dúvidas que o setor da construção, manutenção, conversão e reparação naval, tem potencial para assumir um papel fundamental no desenvolvimento da economia do mar nacional.

As oportunidades estão claramente identificadas e as maiores potências marítimas estão já a investir fortemente e a posicionar-se para obterem uma fatia importante do valor acrescentado. Um dos pilares do investimento assenta no reconhecimento da importância das pessoas na economia, assumindo a educação, o ensino e a formação prioridades absolutas.

E são exatamente estas prioridades reconhecidas que revelam um atraso alarmante em Portugal. Como referido previamente, a escassez de profissionais especializados e as sérias e crónicas limitações no ensino, formação e qualificação de recursos humanos, comprometem seriamente o desenvolvimento do setor da construção, manutenção, conversão e reparação naval, afastando as empresas nacionais na cadeia de valor global da indústria marítima.

As pessoas são o ponto de partida para qualquer estratégia. Não só no papel. No coração, na mente e nas ações. Vamos acertar desta vez?

Sobre o projeto INOVSEA

Promovido pela Associação Empresarial de Viana do Castelo (AEVC) e pela Associação Comercial e Industrial da Figueira da Foz (ACIFF), o projeto INOVSEA visa potenciar a inovação nas PME que integram a economia do mar das regiões costeiras do Alto Minho e Baixo Mondego, tendo como base a cooperação e o incremento de competências.

A inovação, o conhecimento e as redes de cooperação são as peças centrais do projeto INOVSEA. Neste contexto, é potenciada a interligação das empresas a centros de conhecimento e de ciência, através da definição de um ecossistema de inovação que possa apoiar e agilizar o crescimento da economia do mar. O ecossistema de inovação é constituído por um segmento científico que inclui entidades de ensino, universidades e instituições de investigação; e por um segmento institucional que inclui associações, clusters, fundações, municípios e entidades públicas.

É ainda promovida a aproximação a entidades com recursos e competências específicas, nomeadamente incubadoras, centros tecnológicos, redes de empresas e de internacionalização, fontes de capital e habitats de captação de talento.

Aceda ao Plano de Ação INOVSEA e saiba mais.

Texto: Álvaro Sardinha | EconomiaAzul