Sobre a Declaração de Lisboa | Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano

A Declaração de Lisboa conclui a 2ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano (UN Ocean Conference), resumindo uma call to action urgente e um compromisso coletivo para salvar o planeta.


A Declaração de Lisboa apresentada na 2ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano (UN Ocean Conference) foi preparada desde 2020, tendo sido sucessivamente atualizada com múltiplas contribuições dos países participantes, como se constata na plataforma dedicada ao tema.

O facto da 2ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano ter sido adiada devido à pandemia, desde a data prevista – abril de 2020 para junho/julho 2022 – não condiciona o valor da declaração. De facto, esta encontra-se comprovadamente atualizada com os acontecimentos globais recentes, nomeadamente iniciativas, conferências e desenvolvimento de tratados. A declaração reflete também as prioridades de ação atuais, de acordo com os desafios das alterações climáticas e da poluição do oceano, tendo em conta os seus efeitos e consequências no tempo presente e no futuro.

A realização da 2ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano, contribui para acelerar a implementação das medidas urgentes que são preconizadas na Declaração de Lisboa. Embora o evento seja claramente político e um instrumento de diplomacia, tem o mérito inequívoco de promover a comunicação dos media sobre o oceano e os desafios que este enfrenta, assim como a discussão pública. Merecem ainda particular destaque os eventos relacionados com a Conferência, nomeadamente os eventos especiais (special events) e os eventos paralelos (side events), os quais representam um inestimável valor no sentido da comunicação referida. Este valor é ainda acrescido pela promoção da aproximação e reunião de vários públicos, incluindo a comunidade em geral – empresas, investidores, academia, governação, entre outros – um verdadeiro ecossistema de inovação e colaboração, do qual deverão resultar múltiplas iniciativas e parcerias.

Sobre a Declaração de Lisboa

A Declaração de Lisboa é um documento político – uma call for action. Não constitui um plano de ação ou sequer uma estratégia, não sendo um documento vinculativo. O seu conteúdo é resumido e identifica os problemas atuais que ameaçam diretamente a saúde do oceano e a sua biodiversidade, e as consequências para o planeta, tendo em conta que o oceano e o clima estão associados.

A declaração cumpre o seu objetivo ao identificar as ameaças e desafios sentidos na atualidade, assim como as projeções de evolução futura. O acordo expresso no documento pelos países participantes representa o reconhecimento e o compromisso em agir, na procura e na implementação de soluções. Atingir este consenso constitui uma enorme vitória, um excelente ponto de partida para a concretização de ações específicas. A colaboração e a gestão integrada – necessárias para a construção de soluções – precisa deste consenso inicial: uma uniformização de vontades; a definição do caminho a seguir; e a mobilização de pessoas e entidades para o percorrerem.

Adicionalmente, a Declaração de Lisboa reconhece que os problemas do oceano nascem em terra, consequência da ação humana; e que o planeta e a humanidade dependem da saúde do oceano. Apesar da infeliz tradução de “UN Ocean Conference” para “Conferência dos Oceanos das Nações Unidas” (Ocean = Oceano), é também reconhecido implicitamente na declaração que o clima não tem fronteiras e que apenas existe um oceano que nos liga a todos. Como afirmou a reconhecida oceanógrafa e cientista Sylvia Earle, “Não há verde sem azul”.

O que falta na Declaração de Lisboa

A 2ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano e a respetiva declaração política – call for action – não identificam a necessidade e prioridade em promover o Princípio Essencial #1 da literacia do oceano:

Existe apenas 1 (um) oceano, que inclui várias regiões oceânicas ou bacias oceânicas (incluindo as bacias do Atlântico, Pacífico, Índico, Ártico e Antártico).

Vale a pena relembrar que o conceito de literacia do oceano foi desenvolvido por professores e investigadores nos EUA, a partir do ano 2000, tendo sido estabelecido em 2004 através da iniciativa Ocean Literacy. O trabalho realizado culminou na publicação dos 7 (sete) Princípios Essenciais da literacia do oceano.

Os Princípios referidos foram adotados em 2017 pela IOC-UNESCO, através da publicação do documento Ocean Literacy for All - A toolkit. A IOC-UNESCO lançou inclusive a campanha “Drop the S” para apelar à preferência pelo termo “oceano” em detrimento de “oceanos”. Nota: A Comissão Oceanográfica Intergovernamental (IOC) é parte integrante da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

O Princípio Essencial #1 da literacia do oceano é também sustentado pelo National Ocean Service (NOS) da reputada US National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) dos EUA, que clarifica no seu portal:

"There is only one global ocean, divided into distinct named regions."

US National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA)

O valor do Princípio Essencial #1 da literacia do oceano não é meramente concetual, assumindo enorme importância na consciencialização e mobilização de pessoas, comunidades e organizações, para a proteção de um oceano comum que nos liga a todos. O que acontece na Ásia, por exemplo, impacta todo o oceano e o planeta – não existem fronteiras entre as várias bacias ou regiões oceânicas. O mesmo acontece com o clima – não tem fronteiras.

É mais provável que protejamos o oceano se soubermos que existe apenas um, que começa em cada um de nós e que pertence a todos.

Pela mesma razão, a 2ª Conferência das Nações Unidas para o Oceano e a Declaração de Lisboa, deveriam também estabelecer a alteração da designação “World Oceans Day” para “World Ocean Day”, na celebração do Dia Mundial do Oceano, que se comemora todos os anos no dia 8 de junho, desde 2008.

A celebração do Dia Mundial do Oceano pretende chamar a atenção para a importância dos mares e do oceano, na sustentabilidade do planeta e da humanidade. O World Oceans Day foi formalmente reconhecido e adotado pelas Nações Unidas em 2008, através da Resolução 63/111 (ponto N.º 171) adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas.

Várias organizações e até governos, adotaram já a designação “World Ocean Day” em detrimento de “World Oceans Day”:

Importa ainda salientar, que as plataformas e organizações que promovem a literacia do oceano utilizam apenas o termo “oceano” e descartam a referência ao termo “oceanos”. Merecem destaque os projetos em Ciência Viva: Conhecer o Oceano e Escola Azul (DGPM).

As Nações Unidas perderam assim uma grande oportunidade de dar um passo gigante na proteção do oceano. A começar, como referido previamente, pela infeliz tradução de “UN Ocean Conference” para “Conferência dos Oceanos das Nações Unidas”. E pela ausência de apelo à mudança, seguindo as orientações da IOC-UNESCO: “Soltem o S”.

UM SÓ OCEANO : Spillhaus World Ocean Map

Portugal e o oceano

Portugal está no bom caminho relativamente à proteção do oceano e da vida marinha, de acordo com as metas e indicadores estabelecidos para o ODS 14. E também no desenvolvimento de uma economia azul assente no equilíbrio das dimensões ambientais, sociais e económicas – a economia do mar sustentável. Esta orientação é claramente expressa na visão da Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030: “promover um oceano saudável para potenciar o desenvolvimento azul sustentável, o bem-estar dos portugueses e afirmar Portugal como líder na governação do oceano, apoiada no conhecimento científico.”

Também a Task Force para o Mar, estabelecida recentemente pelo Ministério da Economia e do Mar, revela continuidade e alinhamento com a estratégia estabelecida e o respetivo plano de ação. Os vários participantes na iniciativa são convidados a identificar, promover e desenvolver projetos prioritários, incluindo a conservação do ambiente marinho; a valorização dos serviços dos seus ecossistemas; e o conhecimento científico e a observação oceânica. O trabalho está em curso e os contributos dos oitos grupos de trabalho estabelecidos revelam ambição e sentido de urgência.

Existem no entanto algumas dificuldades para o país atingir os seus objetivos em termos de desenvolvimento da economia azul e alcance das metas do ODS 14, que se resumem:

  1. Baixo nível de literacia do oceano da população ativa;

  2. Limitado espírito empreendedor virado ao oceano;

  3. Aversão ao risco e excessiva dependência de apoios financeiros;

  4. Falta de ambição e de assertividade; e

  5. Dificuldades de transferência de conhecimento para os agentes económicos.

Importa converter em “blue actions” as inúmeras “blue talks” já realizadas e combater a excessiva burocracia e estrangulamentos legislativos e institucionais. Aparentemente complica-se o que é simples e privilegia-se o “fazer como sempre se fez”, revelando uma preguiça e falta de agilidade e de empatia, incompatíveis com a aceleração da indústria 4.0 em pleno século XXI, e com a urgência de medidas concretas de proteção da saúde do planeta.

Vale a pena salientar que está a ser desenvolvido um extraordinário trabalho em Portugal, relativamente à promoção da literacia do oceano focada das crianças e população mais jovem, sendo os esforços e o sucesso partilhados por um conjunto de instituições nacionais de excelência. Mas uma parte significativa dos agentes económicos e muitos responsáveis pelo desenvolvimento territorial, revelam um elevado grau de “ignorância azul”, não compatível com a ambição da estratégia nacional definida e com as oportunidades existentes. Torna-se assim fundamental e urgente promover a literacia do oceano para adultos; aproximar pessoas e oceano – todas as pessoas.

O mundo e o oceano

É reconhecido que as emissões de gases de efeito de estufa (GEE) causadas pelo homem são o motor das alterações climáticas. E que 80% do lixo e poluição no oceano tem origem em terra.

Do ponto de vista global, é reconhecido que a maior parte dos problemas do planeta e do oceano têm origem na desigualdade e na pobreza, que grassam de forma persistente em muitas regiões do mundo.

Não existirá justiça ambiental sem justiça social”, afirmou recentemente Ricardo Serrão Santos, ex-ministro do mar.

"A melhor maneira de aprender a multiplicar é antes aprender a dividir", acrescenta Lindalia Junqueira Reis, empreendedora visionária.

Rio Pasig: Manila - Napidan (25 km), Filipinas

Adicionalmente, as principais dificuldades para travar os problemas do planeta, do oceano e das pessoas, têm origem na falta de confiança generalizada nas instituições de governação, de cada país e a nível global. Proliferam as instituições ineficazes, corroendo o capital social e a mobilização ativa, sendo a confiança e a participação cada vez mais degradadas pela hipocrisia e inconsistência das palavras e das ações. A situação culmina no reconhecimento da falta de agilidade e até de capacidade da Organização das Nações Unidas, para lidar com os grandes desafios da atualidade.

Por outro lado, a responsabilidade pelos problemas do planeta e do oceano não é repartida de igual forma pelos diferentes países e regiões:

  • De acordo com a plataforma ClimateWatch, cerca de 60% das emissões de GEE têm origem em apenas 10 países, enquanto os 100 menos emissores contribuem com menos de 3%. A energia representa quase três quartos das emissões globais, seguida pela agricultura. Dentro do setor da energia, o maior emissor é a geração de eletricidade e calor, seguido pelos transportes e produção industrial. A China, EUA, Índia, Federação Russa, Japão, Irão, Alemanha, Arábia Saudita, Coreia do Sul e Indonésia são, pela ordem indicada, os maiores emissores;

  • De acordo com a Statista, 81% do plástico que chega ao oceano é proveniente de rios localizados na Ásia, com particular destaque para as Filipinas, Índia e Malásia;

  • Também de acordo com a Statista, as emissões de GEE variam em função do nível de vida das pessoas: os 10% mais ricos do mundo são responsáveis por cerca de 47% das emissões globais de CO2.

Os países mencionados assumem assim a maior responsabilidade sobre os problemas que afetam o oceano e o planeta. Mas a responsabilidade não pode ser atribuída apenas aos países e aos seus governos, ou a organizações como as Nações Unidas – todas as pessoas são responsáveis.

E as pessoas podem ser o maior motor de mudança: é reconhecido cientificamente que a alteração dos hábitos de vida e de consumo pode ter vários efeitos positivos:

  1. Diminuição da extração e do consumo de recursos;

  2. Diminuição da produção de lixo e de resíduos;

  3. Redução da emissão de gases de efeito de estufa; e

  4. Redução da perda de biodiversidade e degradação dos ecossistemas.


O oceano começa em cada um de nós.
Não começa no governo, nas organizações ou nos “oceanos” de outros.

United Nations Decade of Ocean Science for Sustainable Development (2021-2030) (‘the Ocean Decade’)



TEXTO: Álvaro Sardinha, 2022